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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Consequências Psicológicas nas Mulheres, durante o Processo de Tráfico

Os riscos e abusos pelos quais as mulheres traficadas passam são singulares. Existem várias diferenças entre as consequências de um evento traumático único (como uma violação, um acidente) e as consequências traumáticas numa vítima de tráfico, que neste caso está envolvido num trauma prolongado e repetido, podendo ser denominado também de “trauma crónico”. Quando os abusos físicos e psicológicos que estas vítimas sofrem ocorrem em combinação e repetidamente, estes resultam numa sintomatologia similar às observadas em vítimas de outros tipos de abuso e trauma, como violência doméstica ou tortura. Podemos esquematizar as consequências físicas e psicológicas associadas às mulheres traficadas tendo como base 5 diferentes fases no processo de tráfico. O esquema seguinte ilustra, sucintamente, cada uma dessas fases.


Relativamente a cada uma destas fases, é possível realizar diferentes tipos de prevenção de danos de saúde que irão ser discutidos ao longo da explicitação das diferentes consequências que cada fase acarreta para a saúde mental das mulheres traficadas. Nesta mensagem apenas nos iremos focar nas 3 primeiras fases no processo. As 2 restantes fases irão ser exploradas numa mensagem subsequente elucidativa sobre a identificação e intervenção em vítimas de tráfico.

A primeira fase, pre-departure stage, reflecte o período antes da vítima entrar no processo de tráfico em si mesmo. A avaliação da vulnerabilidade das mulheres antes do processo de tráfico decorrer é fulcral, pois reflecte a sua saúde mental sem as consequências per se do processo de tráfico. Esta avaliação ajuda a perceber o impacto do processo de tráfico na saúde mental, antecipando o comportamento da mulher no sentido de procurar cuidados durante o processo de tráfico e afectando os cuidados que vai tomar, bem como resiliência após a saída da situação de tráfico. Aspectos a ter em conta:


• A Prevenção Primária pode ser aplicada nesta fase, antes do início do problema. As intervenções devem incluir estratégias de promoção de saúde mental e sintomas associados, de saúde sexual, sintomas associados a infecções, saúde pública, incluindo prevenção do tráfico e direitos legais a nível de serviços de saúde noutros países.
• A história pessoal é um aspecto fundamental. Neste parâmetro, deve se avaliar os motivos que levaram a pessoa a ser persuadida por uma rede de tráfico, mas principalmente perceber se existe história de abuso sexual ou violência. A violência e o abuso podem não ser o motivo principal que leva as mulheres a procurar um diferente estilo de vida, mas pode afectar negativamente a sua saúde durante o processo de tráfico. Vejamos, mulheres com história de abuso sexual ou de violência antes do processo de tráfico são mais vulneráveis à doença mental e mais propensas a comportamentos de alto risco do que as mulheres traficadas sem história de abuso ou violência. Nadia Kojuharuova, uma psicoterapeuta com larga experiência em mulheres traficadas explica que, muitas mulheres, que sofreram violência antes do processo de tráfico “desenvolvem, normalmente, uma identidade de vítima. Tal faz com que estas mulheres se tornem mais vulneráveis aos traficantes que as manipulam e controlam, fazendo-as pensar que elas merecem o mau tratamento que têm e que não merecem ajuda. Em acréscimo, estas mulheres são mais vulneráveis porque nunca tiveram a experiência de comunicação sem violência, portanto, em certa medida, a violência é normalizada”. Estas mulheres estão mais propensas a desenvolver reacções psicológicas a eventos de stress extremo (ex: sexo forçado), como agressão, depressão e auto-mutilição.
• Outros factores devem ser analisados como os serviços de promoção de saúde no país de origem e as condições sócio-demográficas.


A segunda fase, travel and transit stage, começa quando a vítima concorda ou é forçada a viajar com o traficante. É importante salientar que o estudo que nos guiou apenas estudou mulheres que foram traficadas a nível transnacional. Esta fase acaba quando a mulher chega, portanto, ao destino de trabalho. Muitas são as vezes em que existem várias transições antes do ponto de chegada. Esta é a fase onde, normalmente, os crimes ligados ao TIP começam. Neste nível do processo, é relevante analisar os níveis de stress que acompanharam a partida de casa, bem como a resposta às primeiras ameaças, à violência e aos obstáculos decorrentes da passagem de fronteiras. A viagem, o estatuto ilegal, o medo das autoridades, a incapacidade para falar a língua do país de destino compõe as principais barreiras. Para a maior parte das mulheres, os pensamentos de sobrevivência são primários, ignorando uma possível fuga. A ter em conta:


• O chamado “trauma inicial” ocorre quando as mulheres se apercebem que estão em perigo de vida. Este é, normalmente, agudo e envolve sintomas de ansiedade extrema e pode inibir os processos ligados à memória bem como a rememoração. Este perigo é percepcionado, por exemplo, pela passagem de rios com elevadas correntes, de montanhas traiçoeiras ou zonas de guerra. Quando a mulher passa por este limite mental entre a relativa segurança do passado e o extremo perigo que corre agora, ela pode ter sintomas dissociativos como forma de negação e preparação para acontecimentos ameaçadores subsequentes. Para além disto, a forma como uma mulher processa o momento traumático pode impactar a sua habilidade para relembrar eventos ligados a este. Em resposta ao stress, a atenção selectiva é inibida. Assim, a vítima já não se concentra ou observa, simplesmente permanece hipervigilante a todo o tipo de estímulos com vista a reagir rapidamente a uma ameaça. Como consequência disto a capacidade para recordar detalhes está diminuída. Isto explica porque quando a polícia pede a estas mulheres que rememorem aspectos delineadores do seu processo de tráfico (locais por onde passaram, por exemplo), estas não conseguem relembrar.
Início da violência e do abuso sexual, com estratégias por parte dos traficantes como a “Breaking-in Violence” que levam as mulheres a optar pela obediência como o melhor e mais seguro caminho. Depois das mulheres passaram por condições de sobrevivência extrema e após serem forçadas a longas horas de trabalho, estas não conseguem considerar as suas opções ou contemplar estratégias de auto-defesa. A violência serve como forma de controlo. Com este cenário, a total dependência das mulheres está assegurada. Por tal, esta é a fase onde é mais difícil aplicar medidas de intervenção.


A terceira fase, destination stage, é o período em que o indivíduo é posto a trabalhar e explorado. Optamos aqui por fazer duas tabelas que, sucintamente, demonstra riscos físicos, sexuais, sociais entre outros uma vez que estes têm repercussões a nível da saúde mental, apesar de não terem necessariamente consequências directas. Colocamos também excertos de algumas mulheres vítimas de tráfico que fizeram parte da amostra do estudo pelo qual nos guiamos. Os riscos e as consequências psicológicas são aprofundados após a tabela. É nesta fase que se pode aplicar a Prevenção Secundária, para responder a sinais precoces do problema. Neste sentido, deve-se oferecer tratamento para potenciais problemas de saúde, assistência e informação que possam ajudar a evitar novos danos.


A coerção psicológica e o abuso são marcos usados para controlar as mulheres e as tornam dependentes dos traficantes. Este objectivo está alcançado quando a mulher já não consegue mais diferenciar o seu self pessoal e social da identidade construída através do processo de exploração. O seguinte excerto explica esta noção:

“Eu sentia-me terrível. Eu pensava constantemente no que é que eu estava a fazer, se era eu ou não. Eu não conseguia reconhecer-me naquilo que eu fazia”.

O abuso psicológico é extremo e destrói as defesas mentais e físicas. Todo o tipo de abuso assinalado na tabela conjuntamente com intimidações, ameaças (por exemplo, contra os familiares) levam a um controlo psicológico total. Os pensamentos suicidas são normais, de acordo com a amostra do estudo. Estes ocorrem na lógica destas mulheres se sentirem uma “propriedade”, do aprisionamento, controlo coercivo, submissão e alienação. Muitas não tentam suicídio pois pensam nos seus familiares e no regresso a casa.

“Eu sempre me sentia ansiosa e medrosa. Nada me interessava e eu sentia que queria morrer.”

A mentira, a decepção e o controlo emocional (no caso de serem exploradas e traficadas pelos familiares e namorado) são aspectos relevantes a ter em conta. A reacção à decepção, ou seja a reacção à descoberta de engano ou fraude por parte dos recrutadores. Muitas mulheres sentem-se culpadas e “estúpidas”, envergonham-se do seu “erro”. Como agravante, existem ainda as humilhações que sofrem por causa das violações em que participam. Este cenário proporciona um maior controlo aos traficantes que manipulam estes sentimentos, fazendo com que estas mulheres se sintam cúmplices da sua própria escravatura. Por outro lado, os sentimentos de decepção com os recrutadores fazem com que estas mulheres percam a confiança em si próprias e nos outros. Este processo de auto-culpabilização conjuntamente com sentimentos de descrédito nos outros leva a um caminho destrutivo e à falta de coragem para procurar ajuda. Como consequência, estas mulheres confiam e obedecem às direcções que a pessoa mais perto de si a persuade a tomar, do que propriamente nas suas decisões (na maior parte dos casos, o traficante). Assim, acreditam em muitas mentiras que os traficantes lhe dizem, com o agravante de não conhecerem a língua e quadro jurídico do país, na maior parte dos casos. O exemplo a seguir ilustra tal.

“Eu disse ao traficante que se ele me deixasse ir, eu iria ter com a polícia e que não contava nada acerca dele. Ele respondeu-me que se eu fosse a polícia eles iriam me colocar na prisão.”

Quando a decepção ocorre especificamente em relação a um familiar/namorado, ocorre uma dicotomia amor/abuso, onde a auto-percepção da mulher é negativamente readaptada, expressando devoção e dependência através da continuação de trabalho sexual exigido pelos proxenetas (namorados ou familiares, neste caso). Só mais tarde é que as mulheres começam a compreender a incongruência entre amor e exploração.

Por fim, convém sublinhar estas mulheres sentem-se num ambiente inseguro e imprevisível. A incerteza em relação ao futuro cria grande ansiedade que se manifesta por sintomas psicossomáticos (dores, insónia, pesadelos, fraqueza, diarreia, suores, desmaios), alterações comportamentais (isolamento, suspeição, irritabilidade, agressividade, impulsividade, tentativas suicidas, depressão, medo, fobias) e diminuição da capacidade cognitiva (confusão, desorientação, lacunas de memória, perda da concentração). Estes sintomas são mediados pela supressão imunológica devido ao stress crónico.

“Eu estava sempre cheia de medo que o meu proxeneta me batesse e abusa-se sexualmente de mim. Eu permanecia num contínuo estado de ansiedade e preocupação. Às vezes, não conseguia dormir, o que me causava dores de cabeça.”

(Retirado de: The health risks and consequences of Trafficking in Women and Adolescents, Findings from a European Study)

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